(José Ferreira Gomes)
Nb. Num momento de debate e consulta publica de documentos, com subsequente planificações para a década vindoura, texto que se recomenda e e até se apela que se leia e pondere, assimile. IMPORTANTE contributo.
Texto:
A. A realidade
O José Eduardo é um jovem físico com um currículo muito promissor para os seus 30 anos. Licenciou-se e fez a sua iniciação científica no Departamento de Física da Universidade de Valverde, um dos primeiros departamentos a firmar a sua actividade científica a partir dos anos setenta e com uma notável produção científica e fortes relações internacionais. Neste ambiente, e com uma forte iniciativa, pode construir a sua carreira de jovem e promissor investigador. Alguns sinais de depressão começaram a surgir no horizonte em meados dos anos noventa. A pouca procura da Física pelos estudantes aliada a mecanismos automáticos de cálculo da dimensão dos quadros de professores a partir do número de alunos, levou a que o número de docentes e a dimensão dos quadros estabilizasse primeiro e sofresse depois redução. As consequências começaram a ser dolorosamente evidentes: um corpo docente envelhecido e carente de renovação e uma quebra das “legítimas” expectativas dos mais jovens: enquanto pacientemente esperavam pela sua vez para uma desejada e merecida promoção a um escalão superior da carreira viram as poucas vagas que iam surgindo ser devoradas pelo automatismo dos ajustes decrescentes dos quadros. Que opções lhe restavam? Contentar-se com a sua sorte de se manter como professor auxiliar apesar de ir acumulando um dos melhores currículos de entre os físicos portugueses ou “emigrar”. Como era jovem, profissionalmente agressivo e estava desejoso de assumir um papel mais autónomo na sua profissão de docente/investigador, “emigrou” para outra universidade algo distante das suas raízes valverdinas. Teve de pagar do seu bolso os custos de deslocação, teve de se adaptar a uma nova cultura teve de reconstruir o seu grupo de investigação e o seu laboratório (como rapidamente descobriu, a sua opção é tão invulgar – e talvez indesejada - que nenhumas ajudas especiais estão previstas). Começou de novo mas ao fim de pouco tempo sentiu-se compensado por encontrar ter melhores oportunidades de trabalho e melhores perspectivas de carreira. Para o Departamento de Física que deixou fica o desconforto de perder um dos seus mais promissores jovens investigadores o que é mal compensado pela corporativa alegria de alguns que vêm as suas oportunidades de promoção ligeiramente melhoradas.
Esta é já hoje a realidade em muitas das nossas instituições mais sólidas, em áreas que sentiram primeiro a quebra da procura. Embora seja duro para os indivíduos e, face aos nossos hábitos, penoso para as instituições, introduz uma bem necessária componente de mobilidade. Com a paragem do crescimento, a situação aqui retratada como excepção tornar-se-á regra e terá efeitos positivos no nosso sistema de ensino superior. Mesmo que as vantagens não fossem tão claras, não poderíamos suster a evolução da sociedade. Poderemos adiar a resolução do problema tornando-o maior e mais intratável!
B. Fraquezas/forças e ameaças/oportunidades
O ensino superior português encontra-se numa encruzilhada que merece reflexão cuidada e decisões firmes que lhe abram novas oportunidades mas que evitem correr riscos excessivos.
B1. Pontos fracos
• Inbreeding
É universalmente reconhecido que a falta de mobilidade dos docentes/investigadores entre as nossas instituições de ensino superior coloca gravíssimos problemas ao desenvolvimento e ao equilíbrio interno do sistema. Continua a haver jovens portugueses a fazer a sua formação avançada no estrangeiro mas o seu impacto nas nossas instituições tem vindo a decrescer rapidamente. Portugal é o único país da União Europeia onde esta situação existe e nunca foram tomadas quaisquer medidas para a corrigir.
• Homogeneidade
Apesar das enormes diferenças de qualidade entre as instituições do ensino superior (universitário/politécnico, público/privado) não parece haver entre os candidatos nem entre os empregadores uma percepção clara desta realidade. Se observarmos as missões que as instituições se atribuem (e muitas já fizeram e tornaram público este exercício) dificilmente encontraremos diferenças essenciais. A diferente vocação entre o ensino universitário e o ensino politécnico é bastante apregoada mas mal praticada e muito mal percebida.
• Pouca transparência na designação dos cursos
A concorrência entre as instituições na busca de novos alunos levou à proliferação de novas licenciaturas para além do que o público (e até os próprios universitários) são capazes de diferenciar. Se nas universidades esta situação podia ser associada à autonomia de que têm gozado, nos politécnicos a situação é ainda mais grave apesar do controlo administrativo que mantêm.
• Debilidade do corpo docente
A aceitação do Mestrado como habilitação suficiente na carreira docente do politécnico é incompreensível por ser reconhecido que este grau (com uma prática corrente em que não é cumprida a letra e o espírito da legislação) não dá uma preparação mínima para a investigação autónoma. Alguns institutos politécnicos onde os docentes seniores não são doutorados continuam a resistir à contratação de docentes doutorados. Esta realidade terá a consequência de que essas instituições não poderão ir mais longe do que uma prática de ensino de tipo liceal no futuro previsível. Não deve tomar-se esta asserção no sentido crítico. Poderá simplesmente significar que estas instituições assumirão a missão de estabelecimentos de ensino superior sem investigação à imagem dos Community Colleges americanos, Cours Préparatoires dos liceus franceses ou das planeadas teaching universities britânicas. Assim possam atingir um elevado nível de ensino.
B2. Pontos fortes.
• Qualidade do ensino
Reconhece-se em geral que o nosso ensino superior atinge níveis perfeitamente comparáveis com o dos países da União Europeia. (É porventura uma das poucas áreas em que não nos situamos na cauda desta Europa a que insistimos em pertencer.) Não é fácil provar esta asserção já que não existem quaisquer indicadores de confiança. Contudo, o facto de os jovens portugueses a residir no estrangeiro, por exemplo os filhos dos funcionários portugueses da Comissão Europeia virem, na sua maioria, fazer a sua licenciatura a Portugal parece ser um forte indicador de que esta percepção está generalizada.
• Aceitação social
Apesar das fortíssimas críticas que o ensino superior se tem auto-inflingido através de opiniões expressas por muitos professores na comunicação social, parece seguro afirmar que tem ainda um forte prestígio que se reflecte na elevada procura que se mantém.
• Qualidade da investigação
Todos os indicadores assinalam o enorme progresso que a produção portuguesa de resultados de investigação com projecção internacional teve nos últimos anos. O crescimento foi o máximo de todos os países da União Europeia. As queixas que frequentemente se ouvem de que o seu impacto no tecido económico português é diminuto pode ter mais a ver com a fragilidade dos nosso tecido económico do que com o isolamento do ensino superior. A baixíssima despesa privada com investigação é um claro sinal desta debilidade.
B3. Ameaças
• Baixa demográfica
A baixa da procura a que estamos a assistir em consequência da quebra demográfica que nos vai acompanhar ao longo dos próximos anos está a ameaçar o modelo de desenvolvimento do ensino superior que conhecemos nos últimos decénios. Estando habituadas a um crescimento sem limites, as instituições encontram dificuldade em adaptar-se a esta nova fase. A situação é particularmente difícil nos institutos politécnicos (que não conseguiram afirmar-se como alternativa), nas instituições privadas e nas universidade públicas que foram localizadas em regiões que se sabia não poderem canalizar estudantes suficientes para as justificar.
• Mobilidade internacional
Independentemente do processo de Bolonha que continua ele próprio a ganhar a sua própria dinâmica, as condições gerais da sociedade implicam uma maior mobilidade com um número crescente de jovens a procurar educação superior fora do seu país natal. Prevê-se que isto se acentue no segundo ciclo de formação e muitas instituições europeias preparam-se já para assumirem uma posição de liderança nesta área. As instituições portuguesas, pelo menos algumas das melhor posicionadas à partida, terão de assegurar um lugar entre esta nova elite. Só assim poderemos aspirar a ter uma balança de trocas de “serviços de educação” razoavelmente equilibrada o que, a não acontecer, traria mais um factor de desequilíbrio externo grave.
• Perda de competitividade na investigação
Como foi referido acima, Portugal conseguiu nos últimos anos índices de crescimento da investigação muito interessantes, mas a produção científica portuguesa é ainda muito baixa pelos padrões europeus. Isto significa que teríamos de continuar este esforço para nos aproximarmos de países mais dinâmicos como a vizinha Espanha. Não podendo este crescimento ser obtido apenas com aumento de investimento, todo o sistema terá de ser reorganizado de maneira a induzir um aumento de produtividade.
B4. Oportunidades
• Capacidade de resposta das instituições
As instituições de ensino superior têm dado excelentes provas da sua capacidade de resposta quando devidamente estimuladas. O melhor exemplo será o aumento da capacidade de acolhimento que foi, nos últimos anos, uma consequência da fórmula de financiamento. (O facto de agora ter de ser abandonado este objectivo não invalida a constatação de que as instituições têm respondido muito bem.) Identificadas as direcções de desenvolvimento estratégico, basta introduzir os mecanismos de incentivo correctos para que o sistema siga o caminho desejado. Seria errado recorrer a mecanismos de controlo administrativo que foram sendo abandonados em muitos países e que sempre causam maiores resistências.
• Cultura de qualidade
Aproveitar a excelente aceitação da a avaliação das licenciaturas (pela FUP) e da avaliação das unidades de investigação (pela FCT) para a generalizar a avaliação a todos os programas conducentes a grau e até mesmo aos docentes/investigadores, individualmente. Muitos países têm já sistemas deste tipo em funcionamento e não poderemos adiar muito mais a sua implantação.
• Processo de Bolonha
Aproveitar a dinâmica de reforma que o processo de Bolonha nos oferece para fazer reformas que, com os incentivos correctos, reoriente o desenvolvimento de todo o sistema de ensino superior.
C. As dificuldades políticas do momento
• Problema orçamental
A administração tem sempre, pela sua própria natureza, um problema orçamental. Numa entidade privada, todos os estímulos são canalizados para a baixa de custos e aumento de lucros. Na administração pública, um aumento de orçamento é sinal de e ponto de partida para aumento de influência. Assim o problema orçamental não é novo mas assume nesta altura novos contornos por sermos obrigados a abandonar o crescimento a que todo o sistema se habituou nos últimos anos. Deve acentuar-se que este problema não resulta de um desequilíbrio ou desperdício evidente. A despesa com o ensino superior português (em termos de fracção do PIB) não está acima da média europeia e a despesa com investigação está ainda abaixo dessa referência. Contudo, o abrandamento e fragilidade estrutural da economia e os conhecidos desequilíbrios graves de outros sectores públicos (ensino não superior, saúde, justiça) parecem forçar o sector do ensino superior a um sacrifício orçamental. Pode ser incompreensível mas parece ser inultrapassável a decisão de forçar o ensino superior a uma contracção orçamental enquanto se oferece um aumento modesto ao ensino não superior, que é o único de toda a OCDE com custo por aluno acima do superior.
• Baixa do número de estudantes
Todo o sistema de ensino superior foi sendo desenvolvido tendo em vista um ilimitado crescimento do número de estudantes que o procuram. Não é esta a realidade e isto é sabido há vinte anos, quando a taxa de natalidade centrou em queda brusca. Como se não soube ou não quis prever o problema, temos agora de enfrentar desequilíbrios graves com instituições recentes, com corpos docentes jovens e novas instalações (por vezes luxuosas) a ficarem desertas. A tentação óbvia é seguir a via de regulação administrativa, o chamado planeamento centralizado que foi moda em parte da Europa durante setenta fatídicos anos.
• Problema de governo das instituições
O governo das instituições de ensino superior mantém um sistema herdado do período pós-revolucionário que foi, na altura, excelente. Hoje, é um factor de inibição do bom funcionamento das instituições mas, estando quase todos de acordo com isto, nenhum governo parece disposto a enfrentar as naturais resistências à mudança.
• Estatuto de autonomia
O actual estatuto de autonomia das universidades foi aprovado na Assembleia da República por unanimidade e é, formalmente, dos mais avançados da Europa. Contudo, a falta de mecanismos de fiscalização externos e um sistema de governo fortemente irresponsabilizante, tem sempre levantado grandes reservas em sucessivos governos.
• Estatuto dos docentes
O estatuto da carreira docente universitária é o produto de uma época pouco posterior à da autonomia, e o do politécnico é pouco mais recente. Sucessivos governos reconheceram a necessidade de o actualizar embora se estivesse sempre longe do consenso. E, sem consenso, não houve alterações. Os tempos são, hoje, diferentes e a alteração estatutária deveria ter em vista o aumento da governabilidade, da eficiência e da eficácia das instituições.
D. As soluções – aspectos fundamentais (propostas!)
Há mais acordo no diagnóstico do que no prognóstico ou no tratamento. Quanto ao prognóstico, há muito boa gente que acha que o sistema de ensino superior e, em geral, as sociedades são suficientemente resilientes para que, deixadas aos seus próprios mecanismos de fruição imediatista, vão construindo um razoável caminho de progresso. As actuais dificuldades estruturais por que o país passa não parecem confirmar este optimismo. A alternativa será desenhar novos estímulos que ajudem a orientar o percurso para um destino melhor. Muitos países europeus têm introduzido amplas reformas dos seus sistemas de ensino superior com este fim. A inacção levará, inexoravelmente, à estagnação.
• Modelo de organização: universidades e politécnicos
A opção não é determinante do sucesso do nosso sistema de ensino superior. Contudo, se reconhecermos a necessidade de aumentar a heterogeneidade da oferta aos nossos jovens, então a manutenção do actual sistema binário será já um primeiro passo.
• Transparência da heterogeneidade
Sendo, geralmente, reconhecida a dificuldade de diferenciar os dois subsistemas, haverá que definir melhor os seus diferentes objectivos. Mais importante do que defini-los na lei será a criação de estímulos que levem as instituições a encontrar as suas diferentes missões e a perseguir os seus objectivos da maneira mais clara e eficiente. Para além do ensino, as instituições de ensino superior são normalmente chamadas a realizar trabalho de investigação, desenvolvimento experimental e transferência de tecnologia, contribuindo assim para um ambiente propício à inovação. Será necessário construir indicadores, mecanismos para a sua avaliação e incentivos para o bom desempenho em cada um destes aspectos,
1. Ensino
2. Investigação e criação cultural (entendidas de impacto internacional)
3. Desenvolvimento experimental (entendido em resposta a solicitações da sociedade envolvente) e transferência de tecnologia.
Poderemos estimular as instituições a especializarem-se em cada um destes objectivos, recolhendo os benefícios inerentes ao seu bom desempenho. Neste quadro, nem todo o ensino se deverá entender como associado a um ambiente de I&D. Os alunos poderão escolher, devem ter oportunidade de escolher, qual das modalidades de ensino superior entendem mais adaptada aos seus objectivos ou às suas capacidades. Se algumas instituições se vierem a especializar apenas no ensino, dando um ensino de boa qualidade, isso representará um enorme avanço em relação à situação actual em que muitas instituições o fazem mas não o assumem como objectivo. Deveria esperar-se que todas as universidades tivessem um desempenho razoável no item de investigação mas a competição pelos fundos (públicos) será muito dura e algumas poderão encontrar dificuldades. Os institutos politécnicos deveriam ser fortemente estimulados à excelência no desenvolvimento experimental e na transferência de tecnologia para o seu meio envolvente regional mas é claro que muitas das universidades também continuarão a actuar nesta área com benefícios evidentes para o país. Seria desejável que os fundos para este tipo de actividade fossem de origem mista público/privado. Talvez não se deva ser tão explícito nos textos legais mas apenas criar os mecanismos de avaliação que levem as instituições a ver este objectivo como sua melhor opção. Temos já a FUP com alguma experiência de avaliação do ensino; a FCT faz avaliação da investigação com notável sucesso; seria necessário que a Agência de Inovação complementasse a sua vocação para financiar o desenvolvimento experimental, transferência de tecnologia e inovação com métodos de avaliação sistemática, cuja falta é, hoje, uma deficiência grave.
• Autonomia e responsabilidade
As instituições mais estabilizadas atingiram um estado de maturidade institucional que permite caminhar para uma maior autonomia com responsabilização mais explícita dos seus responsáveis pelo sucesso na prossecução dos objectivos definidos e pela regularidade dos métodos usados. Num ambiente mais dinâmico e mais agressivo internacionalmente, só uma maior autonomia permitirá a algumas universidades portuguesas guindar-se e manter-se na primeira liga europeia. Esta autonomia não deve ser tomada como autarcia do que o sistema actual tem o suficiente. A autonomia não significa também que o estado fique impossibilitado de definir as suas políticas e de as fazer cumprir, incapacidades que o sistema actual manifesta em excesso. Pelo contrário, o estado deve ter um papel decisivo na orientação do sistema de ensino superior e não pode deixar de se responsabilizar pelo seu sucesso ou insucesso. Mas os mecanismos de orientação devem ser mais modernos com o objectivo de aumentar a eficácia e a eficiência e isto significa que as instituições terão de viver num quadro de maior autonomia mas também de maior responsabilidade quanto aos métodos de funcionamento e, principalmente, quanto ao sucesso ou insucesso das políticas institucionais. A autarcia absoluta seria defensável se não fosse acompanhada de auto-financiamento; o financiador terá sempre a responsabilidade de assegurar (perante os contribuintes e perante os cidadãos em geral) que os fundos usados o são no sentido de atingir políticas superiormente definidas.
• Governo das instituições
A maioria das contribuições para a discussão pública em curso apontam no sentido do estabelecimento de órgãos de governo mais fortes ao nível de topo e ao nível das unidades orgânicas o que significa um papel mais importante do Reitor/Presidente. Onde há alguma divergência é no processo de nomeação e de fiscalização do Reitor/Presidente. Há um generalizado entusiasmo pelo modelo do board of trustees anglo-americano. A sua transposição para a cultura portuguesa seria, contudo, de altíssimo risco. Talvez se possa construir um modelo intermédio que dê garantias de estabilidade mas introduza um novo dinamismo no governo das instituições.
• Ciclos e graus de ensino superior
Será muito importante manter a todo o custo a convertibilidade entre os graus actuais e os novos. A actual licenciatura está bem firmada e tem um nível em geral razoável como as avaliações vêm mostrando. O doutoramento parece manter também, em geral, um bom nível, apesar de não existirem ainda mecanismos de avaliação. Quanto ao mestrado, deve reconhecer-se o incumprimento muito generalizado da legislação que o regulamenta. As instituições refugiam-se no cumprimento formal dos requisitos respeitando o período mínimo de um ano entre o início e o termo mas esquecem que os estudantes deveriam estar em dedicação plena… Em muitos casos, os cinco dias de trabalho semanal reduzem-se a uma sexta feira e sábado de manhã. Cumprem-se as horas de contacto (a menos das faltas não registadas) mas esquecem-se as cerca de 40 horas de trabalho semanal. Está muito bem como acção de educação contínua mas dificilmente se reconverte num período sério de trabalho, pelo menos do tipo do trabalho de licenciatura. O bacharelato parece ter perdido aceitação social a partir do momento em que deixou de ser reconhecido como habilitação para a docência e as universidades se desinteressaram dele. Encurralado no ensino politécnico, não conseguiu exceder o prestígio social deste ramo de ensino superior.
• Avaliação da qualidade
Não podemos deixar de ter um sistema de avaliação da qualidade de todos os graus académicos. A avaliação das licenciaturas entrou em rotina e bastará adaptá-la para que mantenha a aceitação e o respeito público. É urgente introduzir sistemas de avaliação dos outros graus. Para os doutoramentos é possível (e urgente) aproveitar a experiência de avaliação da FCT para este fim. Na medida em que isso seja exequível, as avaliações devem ter uma componente internacional.
• Acesso ao ensino superior
O trauma do numerus clausus está a desaparecer pela inversão da relação procura/oferta, com a excepção de algumas áreas como as da saúde e algumas poucas mais. A tentação de o suprimir pode trazer problemas a prazo por as instituições se verem legalmente forçadas a receber um número excessivo em certas áreas. Hoje será a saúde, a arquitectura e a psicologia mas, amanhã, serão outras. Deve manter-se mas não deve ser usado para o controlo centralizado do sistema. Deverá dar-se maior liberdade às instituições para o definirem e o aplicarem dispensando-se o MCES desta ingrata tarefa.
• Financiamento
Este é um problema eminentemente político! Em boa teoria económica, poderiam encontrar-se razões para a partilha dos custos entre o estado e as famílias. Terá de ser muito prudente, não só pela sua conhecida carga emocional mas também por ser ainda desejável que a participação dos jovens no ensino superior cresça algo mais. A haver partilha de custos, o sistema de empréstimos poderia funcionar melhor num segundo ciclo de formação e a justificação do benefício privado é, aqui, mais clara.
E. As soluções – Lei de Bases (propostas!)
• Organização do ensino superior
O conceito de ensino superior único, ainda que organizado em dois subsistemas de universidade e de institutos politécnicos, deve ser explorado até à sua última consequência de se abrir a possibilidade de redenominação de uma instituição na consequência de avaliação e de acordo com regras bem claras. Haverá, certamente, universidades que entrarão em dificuldade com a manutenção do seu estatuto e institutos politécnicos que aspirarão a converter-se em universidades pelo seu próprio mérito. Na actual organização a orgânica de funcionamento das instituições ignora quase completamente a existência de unidades de investigação o que é fruto da realidade histórica de separação entre ensino superior e ciência. Deveriam ser introduzidos mecanismos de articulação. O pessoal docente mais produtivo cientificamente poderia ser dispensado ou ver atenuada a sua carga docente através de mecanismos de substituição e de financiamento apropriados. Teríamos então uma organização focada em objectivos, uma matriz em que os mesmos recursos humanos e materiais serão usados na prossecução dos grandes objectivos da instituição,
1. Ensino
2. Investigação e criação cultural (entendidas de impacto internacional)
3. Desenvolvimento experimental (entendido em resposta a solicitações da sociedade envolvente) e transferência de tecnologia,
com a ênfase relativa que a instituição entenda definir como sua própria missão. Outras áreas de actividade como o ensino dito pós-secundário e a educação contínua poderão, também, exigir estruturas internas especialmente constituídas para efeito.
• Ciclos de estudos e graus
Não tem sido fácil conseguir uma legibilidade transeuropeia dos sistemas nacionais de graus académicos sem reformas que comportam algum risco como a italiana ou a alemã que ninguém sabe ainda avaliar retrospectivamente. O caso francês é paradigmático, até porque todo o processo se iniciou em Paris: A França está a fazer uma reforma global sem alterar uma única designação nem afectar a percepção pública interna do sistema de graus. O sistema era já porventura o mais complexo da Europa. Mantém essa característica, mas do estrangeiro vemos já um sistema simples de ciclos, Licence, Mastère ou Mastaire, Doctorat. Note-se que a Licence se obtém nas universidades ao fim de 3 anos, como já acontecia. Não seria possível seguirmos o exemplo francês e darmos legibilidade externa aos nossos graus sem afectar o edifício bem estabelecido e bem compreendido pela sociedade em geral. Teremos de assegurar ainda que o novo modelo facilite a mobilidade nacional e internacional e, se possível, a profissionalização mais efectiva que muitos reclamam.
A dificuldade está em decidir como compatibilizar o primeiro grau de bacharelato (seguido de licenciatura) nos politécnicos com a licenciatura das universidades. Se o reconhecimento social do bacharelato é modesto, não parece provável que no futuro próximo os nossos jovens procurem muito, aos dezoito anos, formações curtas de 3 anos contra as tradicionais licenciaturas mais longas. Qualquer mudança de nomes (Licenciatura para o actual bacharelato ou mestrado para a actual licenciatura) será vista com desdém pela sociedade: mais uma operação de cosmética e de facilitismo! Proponho assim que se mantenha a estrutura actual com ligeiras alterações quando vista do exterior mas dando oportunidade a profundas alterações internas de
1. (Sub degree – diploma – ao fim de dois anos de estudos em qualquer instituição de ensino superior)
2. Bacharel ao fim de 3 anos,
3. (Licenciado ao fim de 4 anos, o que tipicamente pode corresponder a um ano adicional de formação profissionalizante na mesma ou noutra instituição)
4. Novo Master com 2 anos após o bacharelato
5. (Mestrado como formação de formato semelhante ao efectivo actual, isto é um ano em tempo parcial)
6. Doutor com 3 anos (ou quatro?) após o novo master.
São vantagens deste modelo:
- A introdução de um diploma que poderia servir para pouco mais do que uma alteração de rumo, enveredando por uma formação profissionalizante a atingir ao nível de bacharel.
- A manutenção do posicionamento actual do bacharelato que vem de 1972, agora concedido obrigatoriamente a todos os estudantes que o requeiram ao fim de 3 anos de estudos em qualquer instituição. Numa versão pessimista, isto poderá permitir apenas a re-orientação dos objectivos do estudante; numa versão mais optimista, ao tornar o grau universal, deixaria de ter o actual estigma de politécnico e poderia retomar a sua aceitação pela sociedade.
- Manter o título de licenciado, agora para os bacharéis que façam um ano adicional de formação profissionalizante.
- Novo Master (difícil de denominar em neologismo ou em tradução portuguesa) para os actuais licenciados de 5 ou mais anos. Na prática, os engenheiros continuariam a ser engenheiros mas o grau de suporte (que ninguém usa nem conhece) passaria de licenciatura para este novo master.
- O Mestrado manteria o seu posicionamento e formato (efectivo) actual. Deixaria de ser considerado um grau académico nacional, merecendo apenas um diploma (como o actual master espanhol) sem que ninguém tomasse disso grande nota.
- O doutoramento manter-se-ia inalterado, embora se deva considerar a conveniência de o regulamentar num formato de “curso de doutoramento” com um ciclo lectivo inicial e com uma duração normal de quatro anos à imagem do que o Reino Unido está a fazer.
- A introdução de ciclos curtos de um ano (já integrando estágio) com efeitos profissionalizantes conduziria as instituições a preocuparem-se com este aspecto da sua função, sem prejudicar a marcha normal (i.e. académica) da organização sucessiva de graus académicos. Todos os jovens poderiam aos 18 anos inscrever-se no curso longo de sua preferência com a certeza de que haveria várias oportunidades de reajuste de percurso ou de saída profissionalizada quando a opção pessoal ou a realidade da vida o exijam. Este ciclo curto profissionalizante poderia ainda ser oferecido como peça de educação contínua de reorientação profissional.
- Internamente, as instituições seriam chamadas a uma grande transformação; externamente, a sociedade poderia manter a percepção actual do sistema de graus quase incólume.
- O sistema proposto asseguraria plenamente a mobilidade inter-ciclo com a maioria dos países europeus que já adoptaram um sistema do tipo Attali, 3-5-8. Talvez se conseguisse ainda manter alguma compatibilidade com a Espanha, mesmo que esta venha a adoptar o 4+1-8, como parece inclinada. (Neste ponto, a apresentação de Benjamin Juarez, VR da UPC, em 29/Abril, um homem muito metido nesta problemática e muito activo na reconversão espanhola, poderá ser muito esclarecedora.)
- Teríamos assegurada a saída profissionalizada ao fim de 4 anos (licenciado) e ao fim de três anos (diploma + 1 ano = bacharel). Sem mecanismos deste tipo, não se vê como as universidades ou os politécnicos se interessarão mais pela profissionalização dos seus alunos.
Habilitação de entrada para a docência no ensino superior: Não há razões, de princípio ou de realismo prático, para que não se adopte o doutoramento como habilitação de entrada, embora possa haver a possibilidade de, em certas áreas onde a oferta de doutorados é ainda muito limitada, admitir assistentes (não doutorados) com contrato temporário.
F. As soluções – Leis de Autonomia (propostas!)
• Organização e autonomia
Para que as instituições, pelo menos aquelas que se queiram expostas à competição internacional, possam responder aos desafios num mundo em mutação mais rápida, é necessário que sejam dotadas de maior autonomia efectiva o que, como se disse acima, não significa maior grau de autarcia. Na área da autonomia financeira e patrimonial, a qualificação de “fundo e serviço autónomo” é manifestamente insuficiente.
• Responsabilização
O reforço das competências e responsabilização pessoal do Reitor/Presidente darão maior agilidade à gestão das instituições. Isto tem de ser acompanhado de uma alteração do método de selecção dessa personalidade.
• Governação
Só um sistema de governo mais forte pode permitir às instituições o necessário desenvolvimento futuro. Um modelo intermédio entre o actual (ineficaz mas bastante arreigado) e o board of trustees (muito desejado mas difícil de implementar) poderá ser construído mantendo o equilíbrio benefício/risco.
Uma sugestão:
Conselho de curadores de 24 elementos, 12 por eleição interna e 12 externos. Os 12 internos seriam 6 professores, 4 estudantes e 2 funcionários; os 12 externos seriam 2 nomeados pelo MCES, 4 antigos alunos eleitos pela respectiva associação, o Reitor/presidente e mais 5 cooptados, sendo 2 antigos alunos e 3 personalidades externas conhecedoras do ensino superior. Este órgão seria o responsável pela definição das linhas estratégicas de actuação da instituição, reunindo uma 5 vezes por ano.
Conselho reitoral/presidencial ou Comissão permanente do Conselho de curadores de 5 elementos, o Reitor/Presidente e quatro membros do conselho de curadores, sendo 2 professores e 2 das personalidades externas à instituição. Os membros deste órgão actuariam em tempo completo ou pelo menos, a 50% no caso dos externos e reuniriam, pelo menos, uma vez por mês. Este órgão acompanhará o Reitor/Presidente no governo da instituição, cabendo ao Conselho de curadores a definição das suas competências.
Comissão de escolha do Reitor/Presidente seria constituído por 7 membros do Conselho de curadores, 3 professores, 3 personalidades externas e 1 representante do MCES.
Na boa tradição académica, devem ser mantidos os órgãos académicos como o Conselho Científico e o Conselho Pedagógico com composição próxima da actual mas com funções eminentemente consultivas. Ao nível da unidade orgânica, deve introduzir-se a figura de director nomeado pelo órgão central depois de consulta à unidade.
G. As soluções – Leis de Financiamento (propostas!)
O financiamento das instituições tem de estar ligado à transparência de uma fórmula, evitando-se a má experiência com orçamentos de base histórica e a suspeição com que é justificadamente visto o conceito de contrato programa. A fórmula deve atender ao desempenho em cada uma das áreas centrais de intervenção da instituição,
1. Ensino
2. Investigação e criação cultural (entendidas de impacto internacional)
3. Desenvolvimento experimental (entendido em resposta a solicitações da sociedade envolvente) e transferência de tecnologia.
Terá de construir-se uma fórmula que satisfaça este desiderato apontando claramente objectivos de melhoria e penalizações pela estagnação mas que seja ainda
- suficientemente robusta para não responder demasiado às flutuações anuais dos indicadores,
- capaz de partir da situação actual em termos de realidade concreta das instituições e
- suficientemente discriminativa (num prazo curto) para que algumas instituições possam realizar a sua vocação internacional enquanto outras possam aumentar a sua utilidade para a região onde estão inseridas.
Todos os indicadores a usar na fórmula de financiamento têm de ser objectivos e auditados regularmente pela tutela ou serem o resultado de processos transparentes de avaliação. Entre estes indicadores estará, obrigatoriamente, um indicador da qualidade dos estudantes que terminam os programas financiados. Não se devem usar indicadores que possam induzir as instituições a baixar a qualidade para melhorar a sua posição financeira. (Está neste caso o actual financiamento por aluno que leva as instituições a admitir alunos que não cumprem os critérios mínimos desejáveis, quer em classificação, quer em formação prévia, vulgo disciplinas nucleares do 12º ano. Não se poderão introduzir parâmetros que dependam das taxas de aprovação, o que criaria uma pressão incontrolável para aprovações sem os desejáveis níveis de exigência. Note-se que o chamado insucesso está hoje no seu mínimo de que há memória no ensino superior português!)
• Desequilíbrios institucionais
O ensino superior português viciou-se no mito do crescimento perpétuo e foram criadas muitas instituições cujo projecto só é pensável nesse quadro de excesso da oferta em relação à procura. Por outro lado, este crescimento aparentemente assegurado distraiu as instituições de outras áreas de actividade como a educação contínua, a reconversão profissional, a investigação e o desenvolvimento experimental e transferência de tecnologia. Em graus variáveis, todas as instituições apresentam deficiências em algumas destas áreas e carecem agora de se adaptar a uma situação nova. A situação é particularmente grave nas instituições do interior e do sul do país assim como na Madeira e nos Açores. Era bem sabido que não haveria localmente procura para justificar estas instituições de ensino superior de forma continuada, mas o mito do crescimento e o entusiasmo regional conduziram a uma situação delicada. A tendência em todo o mundo é para os estudantes procurarem uma instituição de ensino superior próximo da sua residência, se possível uma que não os obrigue a uma residência temporária. Mesmo nos países europeus onde esta não era a tradição na época das bolsas para todos, as realidades económicas ditaram as suas leis de racionalidade. Isto é verdade para o primeiro ciclo de formação quando os estudantes não têm ideia clara dos seus objectivos, mas altera-se à medida que começam a conhecer melhor o mundo diverso do ensino superior e definem melhor os seus objectivos profissionais.
Portugal tem de decidir se tem disponibilidade financeira para ter um grande número de estudantes deslocados e se pode manter instituições menos eficientes na utilização dos recursos disponíveis. Nesta opção, deverão ser criados mecanismos artificiais de apoio às instituições mais frágeis e normas de planeamento centralizado que empurrem os estudantes para lugares onde não gostariam de ir. Infelizmente, isto pode significar um financiamento das instituições mais dinâmicas que fique aquém do nível necessário para manterem um nível internacional. É uma escolha política cujo preço será a manutenção do subdesenvolvimento de todo o nosso ensino superior que obrigará os nossos filhos mais capazes e mais exigentes a procurarem educação noutras paragens. Irão fazê-lo!
A alternativa é a criação de estímulos à especialização das instituições. Nessa altura, uma instituição numa região menos povoada poderá oferecer os perfis de formação mais procurados (para os quais terá um número suficiente de estudantes) e oferecer um primeiro ciclo de educação mais generalista a estudantes que depois vão prosseguir os seus estudos algures num segundo ciclo mais curto que o primeiro. Num modelo de especialização em
1. Ensino,
2. Investigação e criação cultural (entendidas de impacto internacional),
3. Desenvolvimento experimental (entendido em resposta a solicitações da sociedade envolvente) e transferência de tecnologia,
Cada instituição adoptará o perfil de especialização mais apropriado às suas condições de modo a prestar o serviço de melhor qualidade ao seu público.
Visitando, há poucas semanas, uma universidade insular, fiquei surpreendido pelo entusiasmo de alguns jovens docentes/investigadores do departamento de química que estão a considerar problemas com o vinho regional. A visita era de avaliação da investigação por padrões internacionais. O entusiasmo é muito importante mas poderá não ser suficiente face às dificuldades resultantes da falta de meios humanos e materiais. Equipamentos de maior vulto teriam uma utilização muito baixa, mesmo que a compra e a utilização fosse conjugada com todos os potenciais interessados da região. Muito naturalmente, o trabalho possível e as necessidades do meio envolvente são mais do foro do desenvolvimento experimental do que da investigação de nível internacional. A insistência em apresentarem-se como investigadores levará ao resultado provável de não serem eficazes nem na investigação nem no desenvolvimento experimental. Ficarão, então, na delicada situação de conflito inultrapassável entre as solicitações locais e as avaliações internacionais. O resultado provável será muito desperdício e muita frustração!
Naturalmente, algumas destas instituições com falta de estudantes poderão dar mais atenção à investigação mas tal deverá ser o resultado de um quadro nacional de incentivo à investigação de alto nível e só excepcionalmente poderão ser aceitáveis apoios especiais e estes só serão justificados se oferecidos por autoridades regionais ou por fundos de desenvolvimento regional.
O conjunto do nosso ensino superior só poderá ser mais competitivo e de melhor qualidade se for, todo ele, posto perante um quadro de concorrência com incentivos fortes e indicadores claros relativamente aos objectivos que queiram ver-se atingidos.
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(Um comentário ao documento “UM ENSINO SUPERIOR DE QUALIDADE” divulgado pelo MCES em 22/Abr/03)
José Ferreira Gomes, Universidade do Porto, 14/Mai/2003
'via Blog this' The Honourable Schoolboy
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