É urgente uns Estados Gerais para o Ensino Superior
A autonomia universitária devia, em primeiro lugar, ser uma cultura de autonomia, de repúdio da cultura de governação e de financiamento que tem estado em exercício. Assim, não dá.
Está na altura de o Ensino Superior em Portugal fazer um balanço do seu funcionamento. Uns Estados Gerais, trazendo todas as partes envolvidas ou interessadas a um debate claro e com suficiente distância dos interesses imediatos de cada parte.
É tempo de avaliar a qualidade da lei por que as universidades e os politécnicos se guiam. O Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) leva já mais de uma década de aplicação e, só por isso, mesmo em condições normais, já deveria ter sido sujeito a uma revisão.
Se queremos universidades e politécnicos como lugares de cidadania e espaço público, há duas direcções que devem ser revertidas.
Primeiro, acabar com a eleição indirecta de reitores e presidentes de politécnicos, trazendo de volta mais democracia às instituições com eleições directas. A contrapartida disto não é esvaziar os conselhos gerais, que deixando de ser colégios de eleitores se podem tornar os órgãos por excelência de apreciação da governação das instituições, papel demasiado importante para ficar comprometido por um certo conflito de interesses com as suas actuais funções electivas.
Segundo, afastar as universidades e os politécnicos de uma concepção de prestação de serviços de ensino superior a clientes que pagam por eles. Foi este o erro histórico da introdução das propinas em Portugal que, alegadamente, segundo a Lei de 92, teriam como prioridade o financiamento da acção social e de acções que visassem promover o sucesso educativo. Acabaram por tornar-se das mais elevadas da UE (apesar dos baixos rendimentos e dos baixos níveis de formação académica do país). Seria de ponderar terminar com as propinas em pelo menos em algum ciclo de formação.
É urgente pensar a oferta formativa de forma integrada. Não se pode ignorar a irracionalidade (leia-se também: custo para os contribuintes) que é haver instituições quase paredes meias a duplicarem ofertas formativas, apenas porque podem, ao mesmo tempo que se registam lacunas enormes de formação no território. Uma rede de ensino superior bem distribuída pelo país deve ser um pilar central da coesão territorial. Portanto, deve ser pensada como um instrumento de políticas de desenvolvimento regional, contenção do despovoamento e criação de oportunidades.
É um instrumento que não pode ser deixado às lógicas predatórias — que são muitas. Entre subsistemas universitário e politécnico, entre universidades que se acham de primeira e com isso pressupõem a desqualificação das restantes, entre escolas superiores que se digladiam ou repartem poderes e recursos à imagem e semelhança de poderes municipais.
É preciso repensar as formas de contratação de docentes. Seria particularmente benéfico dissociar os concursos de ingresso nas carreiras dos concursos de progressão nas carreiras. Uma hipótese que é polémica, mas devia ser considerada, é os primeiros serem nacionais — evitando a endogamia, os favores, contendo o poder de quem está na instituição ou à volta dela —, e os segundos, pelo contrário, garantirem às instituições menos receios de que os seus docentes sejam ultrapassados por concorrentes externos. Em suma, ingressos menos controlados, progressões mais previsíveis, ambos mais transparentes. E progressões com menos consequências hierarquizantes, pois mérito e hierarquia são categorias muito diferentes.
É preciso ainda proporcionar mecanismos de maior mobilidade dos docentes dentro do sistema, seja entre universidades, entre politécnicos, ou entre umas e outros. Não há qualquer razão, do ponto de vista do interesse público, para que professores e investigadores não possam, ao longo de uma carreira, dar o seu contributo a mais do que uma instituição sem terem, para isso, de a recomeçar. A circulação é um valor inestimável na produção de saber, mas não pode ser justificação para a precariedade. Pôr as coisas nesses termos é acintoso. Mas a verdade é que só haverá incentivos à circulação quando o regime legal de funcionamento das instituições assim o estabelecer.
É preciso uma dotação orçamental adequada a metas de produção científica que deixe de abusar da condição de precariedade. É aceitável que quem queira abraçar uma carreira de investigação tenha de se sujeitar a um período de bolsas, obtidas em contexto competitivo. Mas não é aceitável que o mérito que permite a um investigador obter sucessivas bolsas durante uma década ou mais não culmine num ingresso na carreira para que demonstrou estar capacitado. Políticas de formação científica não acompanhadas de políticas de emprego científico escondem uma exploração inaceitável.
Estas são algumas pistas para a reflexão. Há muitas outras, e sobre estas que apontei há vários entendimentos. Mas a actual tutela nada fez, nem pretendeu fazer, para que se avaliasse, discutisse ou mudasse o que quer que fosse. E aqui temos outra ordem de problemas que o termo da legislatura devia obrigar a enfrentar. O ministro não esteve à altura da missão. Um manifesto pela ciência muitíssimo crítico da sua governação que, para espanto de todos, o ministro subscreve é só o caso um tanto anedótico que ilustra um padrão. Há outros exemplos que são muito mais sérios, que o comprometem e nos comprometem a todos.
Como podemos, entre colegas, estar a atribuir cargas horárias a professores convidados que, ao mesmo tempo, o parecer da secretaria-geral do Ministério classifica categoricamente como ilegais? O ministro homologa, diz que envia à Inspecção Geral do Ensino e da Ciência, até ao Ministério Público, mas neste momento em que se prepara o próximo ano lectivo, é exactamente nos mesmos termos, ou próximo disso, que são aprovadas as mesmas contratações, cada instituição com a sua regra, pese embora todas sejam públicas!
Nós, os colegas que, sob protesto e debaixo de ameaças de sindicatos, aprovamos contratações com cargas horárias ilegais, estamos de mãos atadas: se não as aprovarmos os nossos colegas ficam sem contratos. Este é o mesmo ministro que não põe cobro aos falsos convidados, colegas que sem outra ocupação, fazendo exactamente o que os de carreira fazem, são pagos pela metade, ou pela terça parte, e que não têm voz em lugar nenhum das suas instituições. É um vexame que o nosso ensino superior em vez de perseguir uma relação de pares vá instituindo, por razões financeiras e de poder, uma relação de castas.
Aliás, do mesmo modo que cada instituição escolhe as suas regras, também cada uma vive com um financiamento público diverso da do lado, sem critério transparente, que é o mesmo que dizer, dispensando-se boas práticas de gestão, convocando-se privilégios de proximidade do poder, lógicas de favor, que se pagam de volta com cultura de subordinação.
A autonomia universitária devia, em primeiro lugar, ser uma cultura de autonomia, de repúdio da cultura de governação e de financiamento que tem estado em exercício. Assim, não dá. Jogamos à cabra cega, poder político, CRUPs, professores, da mesma maneira que os investigadores que concorrem a financiamento de projectos e a bolsas exasperam com disposições kafkianas que muitas vezes arrasam a melhor investigação antes sequer de ser considerada.
Podíamos perguntar: inépcia, falta de vontade política ou puro maquiavelismo? Mas a questão é que tendo-se passado uma legislatura inteira a empatar a resolução de problemas estruturais, este ministro tornou-se ele próprio um problema que deve ser apenas conjuntural.
É preciso dar a volta por cima. Um Estados Gerais trazendo governantes, responsáveis de todas as cores políticas, reitores e presidentes de politécnicos, através dos seus órgãos colegiais nacionais, CRUP e o Conselho Coordenador dos politécnicos, mas também, a título individual, reitores, presidentes de faculdades, institutos, escolas superiores, departamentos, unidades de investigação, e colegas, todos, porque é preciso ouvir vozes, razões e soluções, precisamente entre pares, sob a égide de uma cultura de autonomia. Uns Estado Gerais para que o Ensino Superior não dê esta legislatura por perdida.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
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